A vida enfim é um escuro corredor
— Um Grito parado no ar
Olá, tudo bem?
Me atrasei na escrita desse texto, que será breve, mas com passagens interessantes. Começo pelos 79 anos de Raul Seixas, que só vou comemorar assim, em silêncio, rememorando o boletim do ano passado, em que falei bastante sobre ele. Já leu?
boletim n.º IX
Acho importante revisitar o que já foi dito e vivido, afinal isto é Memória. Acontece que me esqueço muito de me ler! Mas faz um bem danado. Inclusive para entender o que melhorou, o que piorou, o que não saiu do lugar… E, às vezes, costumamos repetir certas atividades, sentimentos ou pensamentos nos mesmos meses do ano. Como é perto de meu aniversário, considero um “aparar as arestas”.
E estou aparando, viu. Hoje mesmo publiquei outro texto no substack sobre um mito grego que fala de deslumbre, hybris, etc. e tal. Nós precisamos aprender a fazer escolhas, para não sair por aí carregando pedaços de coisas pelas costas. Tenho sentido necessidade de foco numa só atividade, já que faço um pouquinho de tudo… Ou me organizar melhor, com cada atividade num dia específico, planejamentos, agendamentos, etc. Há um cansaço.
E há cansaço porque há mudança: hoje minha casa tem outra configuração de gente e bicho, estou vivendo finalmente reformas que penso há pelo menos três anos, tenho optado por novos lugares e atividades, enfim. Vida é movimento. E puxa vida, quanto movimento!
Não é segredo para ninguém minha paixão, quase vício, por Graciliano Ramos. Penso que somos parecidos, além dos exatos cem anos que nos separam. E ele é de fato uma recorrência em minha vida: o Fabiano de Vidas Secas que parecia meu avô, a angústia de Angústia que parecia a minha, o ato de escrever em Caetés e em suas entrevistas, o aprender a ler com Jerônimos — ele com o tabelião Jerônimo Barreto, eu com minha mãe, Heronita Jerônimo —, o Paulo Honório de São Bernardo — em partes meu pai, Paulo César.
Paulo Honório no cinema foi Othon Bastos, que também me lembra figuras paternas em seus personagens. Quando pequena, assisti a Éramos Seis, no SBT (a reprise, em 2001), e simplesmente morria de medo dele. Aquela novela… até hoje, eu até tentei ler o livro, mas tem um peso extremamente pessoal para mim. Não só a questão da família, mas a passagem do tempo, os rumos que as coisas tomam, as presenças que se tornam ausências… E o período histórico sempre me cativou, tanto que décadas depois estudei-o profundamente em museologia.
A história, escrita por Maria José Dupré (que posteriormente fundou a Editora Brasiliense com os sócios o marido Leandro Dupré, Caio Prado Jr., Monteiro Lobato e Arthur Neves), acontece entre a I e a II Grande Guerras, temas que tenho revisto desde o ano passado. Fala de uma família de classe média baixa e sua vida na cidade de São Paulo, com ênfase nos momentos históricos. Além desta versão há várias outras, como a da TV TUPI, de 1977, e da Rede Globo, de 2019. Mas Júlio Lemos para mim é Othon Bastos, que eu temia com sua úlcera, cintadas e internação num hospital dos anos 1920.
E eu disse a ele que morria de medo dele. Sim! Vi Othon Bastos no teatro, nos abraçamos, ele assinou meu livro surrado de São Bernardo. Nunca imaginei abraçar aquele personagem, nunca imaginei abraçar um personagem de Graciliano.
Na outra newsletter eu comentei:
Habita em mim uma palavra desde que nasci. Provavelmente uma das primeiras coisas que escrevi, mesmo que por repetição, mesmo que antes de aprender a ler. Helen.
E de fato penso que nomes são quem somos em palavras. Se personificamos deuses, antropomorfizamos objetos inanimados e seres irracionais, aqui palavreamos a nossa carne. Nos tornamos palavra. Na palestra, alguém disse algo parecido. E Othon ter representado personagens tão importantes de histórias que me marcaram — como se marca gado —, é como ver uma palavra criar corpo. E riso! Porque ele saber que eu o temia fez ele dar uma super gargalhada que vou guardar no meu coração — ele foi o oposto e o complemento de Júlio Abílio e de Paulo Honório.
E simples. Verdadeiro. Disse que a plateia sabe quando o ator mente. Ele deve ser verdadeiro. De fato: já vi vários atores comentarem, por exemplo, que não se deve representar um bêbado com tropeços: um verdadeiro bêbado tenta a todo custo não tropeçar, ele busca o equilíbrio. Um ator deve então, não se desequilibrar de propósito e parecer uma coisa falsa, mas buscar a todo custo o equilíbrio ansiado por um bêbado.
Othon não foi forçosamente exilado, nem buscou exílio nos tempos de Ditadura. Enquanto isso, por ter ficado, ficou firme, resistindo, com seus amigos atores no grupo de teatro. Um resistente do Teatro, que poderia ter se perdido, se acabado. Antes disso, construiu um teatro na Bahia, seu estado. É o Teatro Vila Velha, erguido pela Companhia Teatro dos Novos, que tem como logo Dom Quixote, o incansável. Atuou no cinema novo, foi Corisco (que citei, o verdadeiro, na última newsletter). Mas que alegria saber que seu filme favorito de fazer foi justamente São Bernardo!
Não era um roteiro ou adaptação: era atuar as páginas gracilianas, ensaiando 6 a 8 horas por dia, para, num só take, filmar o que seria visto por todos nós. Porque o dinheiro era pouco. A necessidade é a mãe da criação e sempre postularei isso.
Hoje mesmo vi Al Pacino explicando que a repetição é que possibilita a criação e a expressão. É preciso administrar, honrar, admirar o hábito. Os pequenos rituais, o cotidiano. A vagareza. As novas chances: segunda, terceira, quarta… Revisar é preciso.
Como disse, há muito cansaço. Não consigo mais pensar no que dizer, mas com certeza diria o que já disse noutros boletins, mas de modo diverso. Aqui deixo o meu texto favorito:
Também reli o décimo-nono, por lembrança de minha amiga Maria Catharina.
boletim nº. XIX
Ambos falam de Tempo e Mistério, e só depois de reescrever o mito daquele que nomeou o Mar Icário que entendi a necessidade que eu tinha do Silêncio, e a necessidade que ele tinha de mim. Comunicação também é despalavra.
são minhas primeiras incursões no reino das metáforas e dos símbolos. Eu penso que esta ginástica possa ser útil, no sentido de que nos obriga a mexer com a gente mesmo. [...] Ter de modificar a própria maneira de falar pode ser bom, no sentido em que a modificação traz a conquista de novos instrumentos.
Com isso não vou deixar de escrever, mas me organizar para escrever melhor. E com um ano a mais, porque farei 32. Sigam acompanhando as redes e o meu trabalho que vou ficar muito contente. A gente vive a vida para trocar ideias e experiências.
Há tanta gente procurando esquecer
Que a vida é à-toa, a morte chega e tudo passa.
— Um Grito parado no ar
Othon Bastos como Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Glauber Rocha, 1964.
No Estúdio
Estou aprendendo diagramação na prática, para não só encadernar cadernos, mas também eles: os livros. Por isso ali eu foquei. Diagramar, imprimir, prensar. Bordei. Próximos passos: costura, mais prensa e colagem de capa. Muito em breve trago resultados.
Fora isso, crochet. Aprendendo novas receitas para oferecer como disponíveis para encomenda.
Já no Algorab corvus, comecei outros projetos: um canal no YouTube, publicações no feed do Instagram e newsletter. Acompanhe!
Adorei essa dança de cinema e literatura. Quero muito reler São Bernardo e assistir ao filme depois. E estou muito ansioso pelas novidades editoriais! 😊