É até engraçado começar o boletim com a cena em um cemitério, sendo que de fato visitei um no início do mês. Minha tia partiu deste mundo com pouco mais de meio século e fomos até a cidade dela homenageá-la e unir a família novamente (que, como toda família, costuma se unir mais até na hora da morte do que em momentos em vida). Foi triste, foi. Mas foi mais que isso: foi bonito. Não é possível explicar para quem tem horror à Morte. É que a vejo como ela é: uma força da natureza, tal qual um trovão, um terremoto, uma erupção vulcânica. E essas forças da natureza são a fonte de toda criação mítica do ser humano. Mítica e poética.
Em Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe explica a origem de Lenora e do Corvo que grasna “Nunca Mais”.
A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos. […] "De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?" A Morte - foi a resposta evidente. "E quando", insisti, "esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a resposta também aí era evidente: "Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor".
— Edgar Allan Poe
Vou tentar não falar muito de titia. O que precisa ser sabido é que ela era linda, tanto viva, quanto morta. E que seu nome era Rosa, como a flor. E principalmente: que é por causa dela que amo batom vermelho, beber e dançar seduzente. Não para seduzir alguém, mas como uma bacante mesmo, que está ali puramente pela existência de Dioniso e nada mais. A alegria de uma mulher que dança porque se ama, esta é a alegria de uma mulher livre. E, por ser livre, era uma mulher inteira: personalidade forte, sorriso no rosto, lábios rubros, dançante, risonha. Ela e mamãe são referências biográficas do feminismo que tenho em mim, e que nunca fiz questão de buscar fora em livros ou coletivos que sei que vou detestar.
Tem certas coisas que a gente sabe, não tem o que fazer. O Destino se mostra evidente, mas silencioso, e cabe a nós perceber ora o todo, ora o específico daquela paisagem. Era certo que um dia ela partiria, e que, de todas as estacas de rosa que tentei fazer brotar e deram errado, uma ou duas finalmente criariam raiz, mas não no jardim da chácara dela, como eu havia prometido. Dito e feito: minha primeira estaquinha de mais de trinta tentativas frustradas vingou. Outra, que dei a papai, que viajei com ela no colo de São Paulo a João Pessoa (e depois Areal), dentro de um copo com água, floresceu com sete dias do enterro.
A Natureza não deixa buracos. Porque Moirai ou Nornas, como preferirem (estudo as mitologias grega e nórdica), fiam, bordam e atam bordados perfeitos, tanto para humanos, como para os deuses. Se uma Rosa murchou e partiu, outras rosas florescem pelos jardins e florestas deste mundo. Na mesma semana da morte de titia, minha prima descobriu que está grávida. A vida é assim: uns morrem para outros brotarem.
Pus Tuco como introdução desse texto porque acordei animada com o sábado que nascia, com o texto que escreveria. Esse texto sairia muito mais cedo, mas eu sabia que ele devia começar pelo jardim. Acordei, tomei café e passei metade do dia podando, arando, plantando, regando. Removi trevos e quebra-pedras, distribuí terrenos para arrudas e babosas, enterrei as raízes de minha primeira Rosa no chão — agora uma espécie de epíteto, de imagem de minha tia Rosa —, semeei flores, fiz desbaste de bebês Perpétuas, herança da mãe que secou. Me percebi jardineira. Nunca me planejei jardineira. Mas era necessário conhecer o ritmo da Vida, e só quem pode ensinar é mesmo Gaia, Ctonia, Hades, Deméter. E, claro, Crono, de curvo pensar. Não ando sem minha foice do lado. Meu ancinho.
🌹 Fiz este reel com legenda sobre o ato da jardinagem. 🌹
Todo esse labor não é hobbie, nem terapia. É conversar com Deus. Desde pequena, e até mesmo em períodos mais agnósticos, tinha para mim que Deus era “o vento que sopra na copa das árvores”: nem sei dizer o porquê, talvez porque sempre me vi ali, refletida. Brincando com espelhos, observando as nuvens, ouvindo Led Zeppelin no fone de ouvido enquanto via a paisagem arbórea pelo vidro do carro numa manhã em que madruguei para ir à praia... Admirando a Noite, como se fosse meu verdadeiro lar. E sei que é. A Lua sempre me acompanhou, e prometeu que jamais me abandonaria. Por isso mesmo não posso abandoná-la, e me devoto a ela, como ao Tempo. Somos carne e alma.
Made up my mind to make a new start
Going to California with an aching in my heart
Someone told me there's a girl out there
With love in her eyes and flowers in her hair
— Going to California, Led Zeppelin
A presença da Morte, e o enterro-semeadura de uma Rosa não foi, nem de longe, o único chacoalho deste mês em minha vida. Sempre amei setembros, porque sempre me trazem choques. Mudam meu Destino. Arranjei empregos, tive desgostos, me apaixonei diversas vezes em algum mês de Setembro (em setembro, se Vênus me ajudar… Virá alguém). E voltei, pela terceira vez, no mínimo, para a museologia. O que é nosso sempre está guardado, não é? Não pretendia, aconteceu. Entrei em parafuso. Isso foi no mesmo dia da aula de Filoctetes1, esse querido trágico argonauta que se tornou meu personagem favorito de Sófocles, ele e Dejanira. Me vi Filoctetes desgotosa com o pé pustulento, dramática assim, desde o dia do eclipse. Como filha da Lua, tenho esses humores engraçados, meio Dr. Jeckyll and Mr. Hyde. Daí experimentei esse retorno ao ofício e percebi que desta vez fui eu quem desabrochou! Como tia Neuma mesmo disse, desabrochei.
Cada vez que fui embora eu era uma. Medrosa, raivosa. Não compreendia a gratidão e o reconhecimento. Ficava brava (!) por ser querida. Porque não compreendia. Não compreendia meus talentos e aptidões. Achava que era uma obrigação a todos, que estava fazendo apenas o que devia e nada mais. Bem besta assim. Mas, conversando com o numinoso, comecei a ouvir que preciso ser mais grata e generosa. Quando soube disso até pensei “caramba, mesmo trabalhando feito um cavalo desde os dezesseis anos?”. É porque não é questão de quantidade. É questão de generosidade, de abertura para as trocas sociais. E generosidade e gratidão andam juntas, sabia? É tão feio não agradecer, quanto não pedir ajuda. Ambas têm pacto com a humildade. E humildade não gosta da hybris, que sempre ronda as tragédias. Por isso gosto tanto de mitos, fábulas e contos de fada: a moral da história ensina muito, sejam ensinamentos universais e atemporais, ou mesmo os datados, que evidenciam o testemunho de um lugar e época. Acho tudo útil.
Os homens veem-se forçados a suportar as desgraças que os deuses lhe dão. Mas quantos, como tu, persistem nos sofrimentos voluntariamente, não merecem que se sinta por eles indulgência, nem que alguém os lastime. Ora tu tornaste-te um selvagem e não aceitas conselhos. E se alguém, com boas intenções, o faz, tu ganhas-lhe ódio e nele vês um adversário e um inimigo. […] Ó meu caro, aprende a não ser insolente na desgraça.
— Neoptólemo para Filoctetes
A gente quer tanto ser livre que esquece que liberdade está dentro da cabeça, como diz uma música que detesto. Brigamos com Deus e o Mundo por algo que deveria estar em nossas mãos, tanto do indivíduo como do coletivo. Você pode ser livre de tudo: de emprego, de relacionamentos. Mas se sua mente não é livre, você não será. Hoje, mais velha (graças aos deuses a gente envelhece), percebo como há tantos caminhos, tantas portas para se libertar de tantas coisas… E muito disso tem a ver com a disciplina e a regra que a rotina impõe. Uma boa organização de horários e tarefas, um aperfeiçoamento das atividades, vai só melhorando tudo. Por isso que a deusa da artesania, do savoir-fare é Atena, que também é deusa da sabedoria. Saber fazer é mais que tudo uma prática. Tentativa e erro. Acordar cedo e regar as plantas, tirar um sábado para remover ervas daninhas e pragas, mexer com adubo fedido, lascar as unhas na terra e encher os dedos de espinhos minúsculos de mini cactos. É preciso saber viver, e só se aprende vivendo, sabe? É possível ser mais de uma coisa, fazer mais de uma coisa, persistir, desistir… A vida é um quebra-cabeças que a gente vai montando. Um bordado tecido pelas deusas filhas de Zeus. Alguns nós que nos prendem são apenas paradas necessárias para rearranjos. Vida é movimento, e não pura teimosia. Problema existe não para crescer, ou para apontar culpados: problema existe para ser solucionado. É por isso que a necessidade é mãe da criação. Por isso que Eros, o desejo do belo e do bom, nem sempre é filho de Afrodite, mas sim de Poros e Penia, a Penúria e o Recurso. Inventamos porque necessitamos.
Quando Afrodite nasceu, os deuses celebraram o evento, e entre eles estava Poros (Recurso), filho de Metis (Sabedoria). Quando o encontro acabou, Penia (Penúria) veio com a intenção de pedir comida, já que era uma festa, e ficou plantada nos portões. Ocorreu que Poros, já embriagado pelo néctar – não havia ainda vinho nessa época –, entrou no jardim e, sentindo-se chumbado, adormeceu. Então Penia, por conta de sua própria condição de penúria, elaborou um plano para ter um filho de Poros: deitou-se com ele e ficou grávida de Amor (Eros). É por isso que Amor se tornou seguidor e servo de Afrodite: por ter sido concebido no aniversário de nascimento daquela e, ao mesmo tempo, por ser por natureza amante do belo, pois Afrodite é bela. De outro lado, dado que Amor não é apenas filho de Poros, mas também de Penia, ele se encontra nessa condição: antes de tudo, é sempre desprovido de recursos e lhe falta muito da ternura e beleza que muitos costumam ver nele. Na verdade, ele é duro, áspero, descalço e desabrigado. Está sempre dormindo no chão, ao relento, ou estendido nas portas e calçadas. Devido à natureza da mãe, a necessidade é sua constante companheira. Mas ele também tem atributos do pai: é ardiloso com o que é belo e bom, arrojado, ávido, pronto para a ação, caçador hábil, sempre tecendo maquinações, ardente por sabedoria, cheio de soluções, por toda a vida amante da filosofia, esperto com magia, poções e também um sofista. Sua natureza não é a do imortal, tampouco a do mortal, mas no mesmo dia floresce e vive, por um tempo, quando prospera em recursos, e em outro momento começa a murchar, apenas para voltar à vida novamente, graças à natureza do pai. E, no entanto, suas conquistas estão sempre se esvaindo, de modo que nem empobrece, nem enriquece. Está sempre entre os dois, da mesma forma que se situa entre a sabedoria e a ignorância. As coisas, com efeito, se dão desse modo. Os deuses não desejam filosofar, nem se tornar sábios, pois já são. Tampouco outro qualquer, se for sábio, desejará filosofar. Nem sequer os ignorantes filosofam ou desejam se tornar sábios, pois a ignorância é nociva nesse aspecto: embora não seja belo, bom ou inteligente, o ignorante vê a si mesmo como suficiente em todas essas características. O que não tem consciência de sua carência não irá, obviamente, desejar o que não julga ter necessidade.’
Tuco, o Feio, é meu personagem favorito de The Good, The Bad and The Ugly, de Sergio Leone. Adoro todos os atores, mas Eli Wallach tem minha predileção de longe. Bom, é só assistir ao filme para ver que ele é o único com um enredo maior, uma família, uma questão moral. É a balança que pende ora para o Bom, ora para o Mau, e que vence justamente porque é um casamento dos dois, ou seja: humano. Tuco é Poros e Penia, Tuco, para mim, é Eros. O desejo de viver. Me identifico muito com ele, no fim das contas.
Essa corrida de Tuco, a cena mais bonita do filme, é uma corrida pela Vida (o êxtase do ouro) em meio à Morte (o cemitério de soldados). O tesouro escondido que todo homem busca, e que por ele o homem invoca a Morte. Tuco sofreu tanto por toda a vida, de fome e de crimes, feito Filoctetes, com o pé pustulento. E naquele momento houve uma virada em seu destino, sendo Blondie seu Herácles/Neoptólemo. O Bom, para livrar-se do Mal, foi engenhoso como Eros: mentiu o nome do túmulo onde estavam escondidas as moedas. E sabe o que achei mais precioso disso?
Blondie (Eastwood) lhe deu um nome falso para enganar Angel Eyes (Van Cleef). Tuco foi direto neste túmulo, com a alegria de uma criança. O que ele não sabia, é que o tesouro estava atrás dele, na cova de um soldado desconhecido, ou seja, Unknown. O tesouro reside no desconhecido! O que buscamos com tanta sede, tanta fome, tanta carência, tanta Penia… Reside no Mistério. Às vezes buscamos tanto, tanto… Viajamos o mundo, caminhamos Sem Destino, experimentamos tantas gentes e ocasiões… Mas o nosso Destino está aqui, no Unknown. Não é um barato? É como a semente que plantamos com tanta sede de ver brotar e nem chega a nascer… Mas aquela planta que simplesmente enfiamos num buraco e deixamos livre, vira uma frondosa árvore frutífera. Uma rosa que prometi a uma Rosa, que só nasceu, Futura, quando a outra se despediu, Passada…
You can’t always get what you want, honey…
You can't always get what you want
But if you try sometimes, well, you might just find
You get what you need!— Rolling Stones
Vê? Falei de Morte hoje com Amor. Porque Morte é parte da Vida, não há uma sem a outra. Porque o Corvo que conversou comigo esse mês, penso que foi o corvo branco de Apolo, antes de procrastinar para comer figos. Foi Munin que, por ser Memória, compreende que o Passado sempre vem e leva um pedaço da gente. Cemitérios são jardins do Passado, foi para lá que minha tia foi. Descansou e foi dormir (espero que) nos Campos Elísios. Mas para Tuco, para mim, e para nós que continuamos vivendo, o cemitério é também terreno do Futuro. Existem mais seres humanos mortos do que vivos. O Mundo é um grande cemitério. Pisamos em fósseis, em arqueologia, em tragédias passadas, memórias adormecidas. Pisamos nos domínios de Hades, envoltos pela fina superfície Ctonia, onde se deita Gaia. Os deuses estão ali, aqui, acolá… São camadas da Terra e do Espaço. E nós, como diz meu querido Jaa Torrano, participamos dos deuses, porque participamos da Vida, e a Vida, os Deuses, nos tomam, nos flecham, nos afetam, nos possuem.
O Estúdio
Mesmo que agora eu tenha meus horários museológicos, continuo com meu Tempo artístico, e muito Tempo dominará o Estúdio São Jerônimo. Ele já nasceu abocanhado por Crono, e eu deixo esse titã mastigá-lo e arrotá-lo pela eternidade tártara que ele quiser. Toda essa elucubração para dizer:
Encomendas abertas! Me contate para criar seu próximo caderno, ou para imprimir sua monografia, tese, dissertação, fanfic, conto ou poema, e encadernar suas palavras com um tecido bordado bem bonito.
Se quiser algo pronto, visite a lojinha do Estúdio. Pretendo trazer mais peças no mês que vem, pois Halloween é sagrado para esta Corva filha do Tempo.
Acompanhe as redes sociais, e veja as publicações. Quando soube da morte de titia, por exemplo, tinha acabado de agendar esse post sobre a migração nordestina, e dediquei a ela. Foi uma das peças-chave para eu ter vontade de escrever História Oral de migrantes em São Paulo, como ela foi.
Leia o texto completo “5 filmes sobre migração nordestina” no site!
Citei a tradução de José Ribeiro Ferreira, mas como fã e ex-aluna de Jaa Torrano, indico a tradução deste último.