Olá, tudo bem?
No início do mês completei 32 anos. Desde sempre me orgulhei muito de fazer aniversário (quem me acompanha sabe a dedicação que emprego em estudar o Tempo), e desta vez não foi diferente. Mas tenho percebido, cada vez mais, como o meu comemorar é diferente do que se costuma fazer. Nunca gostei de festas de aniversário, nem minhas, muito menos dos outros. Se as tive foi por iniciativa alheia, que agradeço, mas prefiro que não se faça. Ainda não descobri outro modo de comemorar, além de estar silenciosamente feliz pela vida e pelo Tempo, aproveitando meu dia ao máximo, pois é o único dia do ano que considero todo meu, todo para mim. Tudo fica mais agradável, independente dos acontecimentos. Por isso mesmo mês de julho é meu mês favorito do ano.
Bom. Acontece que, neste ano, por saber uns cálculos específicos, sei que muita coisa há de mudar. Se para o bem ou para o mal, não importa, já que ganhar e perder são faces de uma mesma moeda. É como uma nova era, e vejo que tudo muda a meu redor também: projetos que foram deixados de lado, bares que mudaram de endereço, muitos amigos com mudanças drásticas nos temas emprego, educação… colegas de trabalho que se despedem para dar lugar a novos, plantas que morrem, dando espaço para outras serem semeadas… É como um grande quebra-cabeças onde tudo está mudando. Mas não de uma forma frenética, é num silêncio muito profundo, quase que um transe, onde todos dormem enquanto mudam de lugar. Como um jogo de xadrez, onde as peças se movem, num tempo estipulado pela estratégia, que define quais peões brancos serão substituídos por algum cavalo ou bispo preto.
Acho fascinante o xadrez. Nada sei, mesmo tendo três tabuleiros e um livro que dá todas as instruções. Tenho, para mim, que a política, o cotidiano, os romances deveriam seguir uma lógica enxadrista para darem certo. Gosto muito de lógica, já que sou apaixonada por filosofia e matemática.
Enfim, nada será como antes, é um “sabor” do vento. Já me disseram algumas vezes que sou sinestésica, talvez sim. Claro que tudo muda o tempo todo, mas é como se eu estivesse tão atenta ao aqui e ao agora, que posso enxergar, como espectadora, os atores mudando de posição no palco, cada um em sua marca específica, de tal modo que é possível prever quem vai partir do ponto A para o B, e quem estará no C e no F no próximo instante. É um saber não sabendo, um intuir, talvez. Sabe, quando viramos a página de um livro, e nesta próxima já é o capítulo seguinte? Sabemos que parte da história ficou para trás, mas ela continua com algo de novo e de constante. Aquele arrepiozinho de curiosidade mista com nostalgia do que se acabou de ler, esta é a sensação. Este é o gosto que fica na boca. Ou, ainda, aquele vento frio e úmido, que prediz que vai chover. Meu aniversário trouxe esse sabor de chuva, um peão que foi capturado pelo jogador adversário que precisou pausar o jogo para terminar outro dia, então deitou a sua peça. Por isso que, muito oportunamente, escrevi parada no ar no subtítulo do boletim anterior. Não tem sabor de ponto, mas de vírgula.
Estou pesquisando Pandora, além ter lido As Traquínias e outras tragédias de Sófocles (estas para o curso com o professor Jaa Torrano), para um texto que está quase pronto para ser publicado em
. Penélope, Dejanira, Pandora… Temos aqui símbolos de espera e esperança, outro tema que tem brotado em minha vida há alguns meses. Por isso a vírgula. Mesmo quando e eu não conversamos, acabamos sintonizadas. Ela falou sobre espera num texto que me deixou sem palavras, porque, se eu não estivesse sentindo o que sinto, vivendo o que vivo, não entenderia tão bem estas personagens tão antigas e distantes — mas próximas no esperar:Foi um mês extremamente cansativo para mim, então decidi fazer tudo super devagar. Bem lentamente, como Guilherme Weber interpretando Trechos de Comunicação e Conferência Sobre Nada in: Silêncio de John Cage na peça Fantasmagoria IV: agora tudo era tão velho por quase (ou mais de) meia hora — uma peça muito boa iluminada pelo meu amigo Guilherme Soares.
Esperemos, bem lentamente, enquanto vivemos ativamente. Sem pressa, sem fuga, porque ambas são amigas da Morte.
Perdemos nessa sexta-feira J. Borges, o mestre gravador, poeta e cordelista pernambucano. Passei cinco anos almoçando no refeitório do antigo emprego admirando suas obras, pois o vice-presidente da Fundação era também apreciador de sua arte. Nesse mesmo emprego conheci e trabalhei com originais do Mestre Noza, uma via sacra de 1965 que me fez querer aprender xilogravura. E, nesse mesmo local, o Destino e um amigo artista me puseram frente a frente com uma gravadora maravilhosa, mas do metal, minha amiga e ex (na verdade sempre) professora Maria do Céu Diel. Fico triste porque J. Borges se foi, mas feliz de estar caminhando no mesmo ofício. Já estava com saudade de gravar, agora é questão de honra continuar. Adoro sua obra Coração de mulher, porque me define bem.
Sou uma peça bonita
feita pelo criador
Sou quente clareio o mundo
no sertão sou o terror
Porque acabo a lavoura
do pobre agricultor— O Monstro do Sertão, J. Borges
J. Borges por J. Borges, Ariano Suassuna, Saramago e Pilar del Rio
Meu vocabulário é o vocabulário matuto, do cordel, do sertão, do pessoal que fala errado. É o que eu vejo, o que eu sinto, o que acontece, as histórias do folclore, das lendas… e o dia-a-dia do povo, né. A vida social do povo. A cultura, a safadeza, tudo isso eu coloco.
— J. Borges
Voltei ao cinema depois de umas semanas sem ir. É uma das coisas que defini como meu lazer. Assistir a um filme começa comigo acordando para tomar banho, escolhendo a roupa, me maquiando para sair. E só termina quando vou dormir. Gosto do silêncio da ida e da volta, e por isso mesmo costumo ir sozinha. Penso que faria muito bem a todo mundo buscar alguma atividade para ser feita a sós, sem depender de ninguém. Ser voyeur e flaneur no mundo.
Foi bom citar Fantasmagoria IV porque me lembro quando vi essa peça, há três meses. No final, fui comer com os amigos e opinei sobre a peça. Me arrependo desde aquele instante. Foi como se eu tivesse comido demais e ainda buscasse por uma sobremesa, sem prazer ou necessidade nenhuma de comer.
Temos que digerir as coisas. Mas só botamo-las para dentro, mais e mais, como um Erisictão eternamente faminto. Daí os picos positivos e negativos de dopamina. Daí os vícios… Desequilíbrio e escassez por excessos.
E é por isso que faço questão de ir sozinha… Maria me disse uma vez que, ao dar aulas com filmes, mandava logo os alunos para casa. Um deles perguntou, certa vez, se não iam discutir a obra depois de assistida. Ela disse que não, pois ele tinha que absorver o que foi experienciado.
Concordo, pois temos que experienciar as coisas sem pressa de outras coisas ou de opinar. E por que opinar? Para que? Para quem? Ter opinião é vaidade, no final das contas. E a vaidade causa discussões on e offline. Fomos ao teatro certa vez, e comentamos como ninguém saiu com aquela sensação do sublime da peça. Pelo contrário: foram comer, falar alto, dar risada, mexer em seus celulares, discutir seus currículos para se demonstrarem importantes… A peça, que me fez chorar por horas e contou com um morcego aparecendo ao final como a maior sincronicidade que roubou a cena, e que falava de injustiça social, simplesmente passou batida. Era mais um check na list de alguém.
Uma obra de arte deve ser sentida, deve causar algum remelexo, bom ou ruim. E isto não se “cura” com remédios, mas com o Tempo. Curar no sentido de “deixar curando”, como fazemos com especiarias como queijos, ou o whiskey, a cachaça, o vinho em barris de madeira por anos a fio. Não se deve fugir de sentimento, e euforia é justamente o que o modo capitalista no qual vivemos nos molda a ter, a todo o tempo. Porque quando a dopamina baixa, vamos maratonar outra série, passar outras doze horas no tiktok… Descobri que existe um termo chamado “cronicamente online”, para quem passa tanto tempo nas redes sociais que compreende assuntos tão específicos que uma pessoa comum não entenderia. Pior que esse termo existir, é que infelizmente ele virou piada. Então essa doença social — que é uma versão artificial da má e velha Gula — talvez vire identidade e não algo a ser criticado e evitado.
Voltando ao filme, um filme não é apenas a película que passa na tela, e Fellini disse isso comparando com a televisão. Hoje tudo piorou com os smartphones:
Não interrompa uma emoção, por Federico Fellini
Acredito que o cinema adentrou numa crise séria. Pensando no aparelho no qual aparecemos agora para os espectadores, no caso de eles não terem ainda mudado de canal com seu controle remoto… Penso que justamente o controle remoto criou uma onda de espectadores impacientes, indiferentes, distraídos, um pouco racistas, porque este aparelho é como um esquadrão de extermínio, que deleta rostos e palavras. Assistir a quatro filmes ao mesmo tempo, parece ser empreitada de um grande cérebro, de uma pessoa dotada com poderes extraordinários. Na verdade, é apenas incapacidade de prestar atenção, minimamente, em quem está falando; incapacidade de se deixar seduzir e encantar por uma história. Cinema costumava ser hipnótico, ritualístico, religioso: você saía de sua casa, estacionava o seu carro nalgum local, então esperava numa fila; você tinha rituais, ingressos, a cortina se abria, você olhava pelo espaço, encontrava seus amigos, então as luzes se apagavam, a tela aparecia, e se iniciava a revelação, a mensagem. Um ritual antigo, que foi modificando suas formas e modos, mas era sempre assim. Você estava ali para escutar. Me parece que tudo aquilo ali foi completamente destruído. Aquela atitude não existe mais. Não há respeito. Aquele aparelho é como um laser que cancela tudo, e se o conteúdo* não tiver um gancho sensacionalista, você pula de canal imediatamente, de um filme para uma partida de futebol, de uma partida de futebol para um quiz, de um quiz para uma propaganda de fraldas…
*Conteúdo é uma palavra que eu particularmente detesto, quando presente na mesma frase da palavra criação. Conteúdo, como eu quase disse noutro texto, mas acabei citando a Mia Sodré, pode ser qualquer coisa. Um saco de lixo no baldinho do seu banheiro tem conteúdo. Conteúdo é apenas qualquer coisa que preenche um continente: um líquido numa taça, cacarecos numa gaveta… Esse líquido é só um líquido, uma dose de veneno, água, vinho? Essa taça de ouro, de cristal, de vidro, de plástico? Um Santo Graal, um elixir, ou um objeto qualquer? Produzir conteúdo todos nós fazemos, seja na internet, na cozinha, na cama ou no banheiro. Criar é outra coisa.
Imagine Fellini conhecendo a internet de hoje em dia. Neste mesmo vídeo, há sete meses, @charly8423 comentou: God Fellini would have a heart attack now. {Deus, Fellini teria um ataque cardíaco agora}. Não, não tem como pensar isso. Estava há pouco lendo As Brumas de Avalon no jardim conversando com o Tempo, e pensei numa coisa — ou foi Ele quem me disse: todos temos o Tempo que devemos ter. Há quem ache cem anos muito pouco para se viver, dado a tamanha possibilidade que a vida traz. Mas trabalhei com muitos quasi-centenários (vivos) no museu. À parte das questões biológicas, penso que temos um tempo prescrito porque, em dado momento, nos descolamos da realidade que vai se apresentando diante de nossos olhos. Uma coisa é o laço afetivo com um filho, até com um neto. Agora bisneto, trineto… Ver todos os seus avós, pais e tios falecerem, seus amigos e até adversários… Ver a paisagem mudar, as novas gerações crescerem e dominarem o mundo cultural, política e economicamente, cada vez mais distantes de nossa compreensão, quase que falando grego… Que bom que não somos eternos, e que viraremos outra coisa depois daqui, seja lá para onde forem os átomos que nos constituem. É solitário viver demais. Encontramo-nos com a Morte mais que o necessário.
Tudo no seu Tempo, ouço desde 2019. No mesmo dia em que J. Borges faleceu, foi dia dos avós, por ser dia da avó de Jesus que foi mãe com idade avançada, Sant’Anna Mestra (presente como estátua em lugar solene no museu em que trabalhei, com mesmo nome de uma amiga queridíssima de outra geração), sincretizada com Nanã Buruquê, que foi a primeira que me disse Você não precisa engolir o mundo de uma só vez. Agora que cultuo Saturno, Crono de curvo pensar, posso rir: quem engolia os filhos, um a um, de uma só vez? O Tempo. Quem Nanã representa? Quem Santa Ana representa? A sabedoria, a maestria da idade.
Trabalha com entusiasmo, que algum dia te surpreenderá ver o glorioso fruto de suas humildes ocupações.
— Imagem de Sant’Anna Mestra no Museu Vicente de Azevedo
Sempre entendi errado esta frase, que o Silêncio e as mais variadas pessoas me diziam sem saber dessa magia interior: não é tudo no meu Tempo, do ego, senão a frase seria Tudo no teu Tempo. A frase é Tudo no seu Tempo, ou seja, cada coisa tem um Tempo próprio. O Tempo humano é, se a Sorte for generosa, de cerca de cem anos. E sempre achei mais do que bom. Todo esticamento de vida é uma distopia. O tempo de uma borboleta é de horas ou dias, assim como uma mosca. O de uma montanha ultrapassa eras… O de uma espécie específica de água-viva, então! Uma estrela, um Universo…
As plantas, que parecem tão inertes e silenciosas, se movimentam. Com avanço de tecnologias podemos ver essa dança fotossintética em time-lapse. Imagina se tivéssemos o mesmo Tempo? O mundo pareceria um cenário do filme Avatar (que nunca assisti):
Os planetas são do mesmo modo. Um ano na Terra dura dois em Marte, menos de três meses em Mercúrio, quase trinta anos em Saturno… Que parece tão distante e calado, vinílico, quando na verdade tem constantes tempestades e seus anéis são uma corrida de F1 entre luas e asteroides que se chocam e vão se matando devagarinho, por muito Tempo e o Tempo todo.
Aquele filme tão amado quanto odiado, Everything Everywhere All at Once fala um pouco de parte desse texto. Talvez Perfect Days, de Wim Wenders, que não assisti ainda. Aposto que se comparar o frenesi do primeiro com o minimalismo do segundo terei outra referência para esse e outros textos. Nem preciso ir tão longe: Lost in Translation com Bill Murray e Scarlett Johansson, lembra? O mundo hoje parece cheio de Johns (o personagem de Giovanni Ribisi), correndo para lá e para cá, causando ausências e excessos. Não gosto de como tudo na vida ficou extremamente rápido: áudios de aplicativo, movimento de dança, músicas, vídeos, projetos, relacionamentos, lances e romances. Falta foco e disciplina, falta estrutura neste mundo. Talvez porque Tudo que é sólido desmancha no ar. Tudo que é sagrado é profanado. Como sabiamente disseram Marx e Engels.
Minha ida ao cinema, inclusive, foi para assistir Once Upon a Time in the West, de Sergio Leone. Com certeza vi com meu pai mais de uma vez desde muito criança, mas ver assim nas telonas pela primeira vez, foi como se fosse a única primeira vez. Sempre gostei de faroeste: a estética, o figurino, as bebidas, os baralhos e, particularmente, apreciar a moral, imoral, ou amoralidade dos personagens — não importa muito qual destas palavras é a mais correta. É um acordo entre inimigos que eu aprecio desde as tragédias gregas. Amo adversários que sentam-se um de frente para o outro e conversam, especialmente quando um personagem pode confiar mais em seu inimigo do que em seu amigo. Não sei por que, mas me causa uma paz tão grande que, como disse na rede social, nenhuma meditação mindfullness é capaz de me dar.
Mas a maravilha deste filme é justamente o Tempo, a Espera. A cena de abertura com os três bandidos na estação de trem, com a mosca e a água que pinga… O planejamento a longo prazo do irlandês, a harmônica de Ennio de Bronson que é emblema de uma vingança que foi curtida por muitos anos em silêncio e música… Esse esperar no deserto, enfim. São muitas significâncias semióticas e semânticas. Parecia uma pintura em movimento. Mas não um movimento em 2x (detesto esse modo de ouvir os outros, acho um desrespeito, me lembra o filme Click e parece que o acelerador não se importa com a pessoa que fala), uma dança no vento, onde tudo tem o seu ponto de parada. Lembra os atores no palco indo de A-B-C-F? Veja eles atuando aqui:
ISTO é cinema.
Não acelere as coisas. Não meta o carro na frente dos bois (este é um conselho para você e para mim).
No Estúdio
Estou trabalhando nos bastidores, terminando três encadernações de livro. Isso mesmo. O Estúdio São Jerônimo é uma editora de publicações mínimas, porque costuro folha por folha, bordo o tecido de capa e estou estudando diagramação e outros idiomas.
Já no mês que vem, provavelmente, voltarei a aceitar encomendas. Mas você pode comprar os artigos disponíveis na loja. E siga o instagram porque farei posts mostrando esse trabalho muito em breve.