boletim n.º XVI
"O Tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da imóvel eternidade." — Platão
Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
— Canto IX. Hilda Hilst.
Talvez hoje seja um dos textos mais difíceis, porque minha percepção de Tempo está mudando, e isso abala estruturas. Peço paciência para quem não curte cartomancia, mas isto faz parte de minha simbologia, e precisarei dessas referências.
De primeira, já acho curioso ser o décimo-sexto boletim, sendo que o arcano deste número é simplesmente um raio que destrói uma Torre. O abalo de estruturas, a ruína, a desgraça: nada será como antes.
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol
— Milton Nascimento e Lô Borges
É perceptível meu amor pelas navegações, coisa que sempre adorei e nunca me dei conta. Costumo não me dar conta daquilo que me é mais caro! É uma negação que faz toda e qualquer coisa ser uma baita surpresa. Como se tivesse nascido para desvendar meus próprios mistérios. Como se vivesse de trás pra frente, abrindo baús velhos de coisas que já vivi e tomando sustos com as reminiscências…
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
— Canto I. Hilda Hilst.
Falei de Tubarão e Peter Pan aqui — tendo Capitão Gancho como meu personagem favorito —, de Piratas do Caribe aqui — eu era alucinada por Jack Sparrow há mais de quinze anos, hoje sou por Davy Jones e Barbossa, que combinam mais comigo. E fui ler Moby Dick este janeiro. Não o original, porque quero de papel e vou fazer leitura conjunta em breve, mas uma adaptação da Coleção Vagalume que vaga pela minha casa há pelo menos 23 anos. Devo ter tentado ler quando menina, mas achei difícil ou chato. E sempre tive essa coisa de que, se acho algo difícil, se eu ficar um pouquinho mais velha vou encontrar o tempo certo de apreciar. Dito e feito: li as primeiras páginas e ri de identificação. HAHAHAHA! UOU! — Obviamente, terminei quase chorando.
Mais: quando me flagro inquieto, irritado, mórbido, sei que chegou o momento de fazer-me ao mar, o mais depressa possível.
Existem ainda outros motivos, é claro, que me levaram a buscar esta aventura: o fascínio que as águas e o desconhecido exercem sobre todos os homens.1
Os mares, as navegações, sempre me fazem pensar a História. Fernand Braudel estava absolutamente certo em estudar o Mediterrâneo para pensar os tempos de curta, média e longa duração. Foi através dos mares que povos distantes se conheceram, se combateram, se colonizaram.
O mar. É preciso tentar imaginá-lo, vê-lo com os olhos de um homem de outrora: como um limite, uma barreira estendida até o horizonte, como uma imensidão obsedante, onipresente, maravilhosa, enigmática. […] o mar permanecia imenso, pelo padrão antigo das embarcações a vela e dos navios eternamente a mercê dos caprichos do vento2
— Fernand Braudel
Walter Benjamin também estava absolutamente certo em explicar o papel do narrador em homens de terra e os viajantes… Esse trecho é tatuado na minha memória e na minha monografia.
A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições.3
— Walter Benjamin
Falando em tatuagem, fiquei tanto com a Esperança em mente que tatuei uma âncora no peito. Também porque ela me acompanha em leituras que faço do meu Jogo da Esperança, depois porque
A âncora é parte crucial de um navio. Ela mantém o navio seguro no porto e pode ser jogada durante uma tempestade para prevenir que o navio seja desviado de curso. Por isso, os primeiros cristãos utilizaram a âncora como símbolo da virtude cristã da Esperança. Essa conexão pode ser feita com uma citação do Novo Testamento:4
“É impossível que Deus minta e, portanto, estas duas coisas nunca mudam: o que Deus disse e o que ele jurou. Assim nós, que nos refugiamos nele, seremos grandemente encorajados e poderemos segurar firme a esperança que nos foi dada.” — Hebreus 6:18
— Robert M. Place
Quando digo que estou sofrendo abalos sísmicos temporais, é porque, de fato, renunciei ao Tempo presente em certo sentido. O que é engraçado, porque agora tenho apreciado o Tempo da Presença. Decidi em algum momento, talvez a vida toda, que não faria nem seria como as coisas são. Para quê, viver assim, a única vida que se vive — ou que se lembra —, sobrevivendo feito mais um pedaço de carne atrasado e arrasado pelas massas? Tenho aprendido a duras penas que não é preciso contrariar para não ser a favor. Posso simplesmente dar as costas e ir embora.
Explico: sempre tentei (e às vezes tenho minhas recaídas) consertar certos pensamentos, batendo de frente com eles. Ora, que audácia — e arrogância — a do jovem que acha que pode fazer melhor. É bem a característica do homem moderno, pensar que o antigo não serve, é tolo, vil, ou enganado por suas crenças, quando o mundo pré-moderno se virou muito bem (não perfeitamente, claro) sem os modernos ceticismos e aquecimentos globais.
Explico melhor: pensemos em O Aprendiz de Feiticeiro. O do Mickey mesmo (que é baseado em Goethe). O Feiticeiro é sempre uma figura antiga e sábia, paciente, vagarosa, sistemática. Tudo ali possui uma razão misteriosa de ser. O Aprendiz não compreende. Sua mente veloz e seus passos vigorosos querem automatizar o trabalho. Para quê tanta enrolação? Então ele manipula elementos alquímicos sem conhecer profundamente, e tudo se perde, tudo se desmancha no ar. Tem que se voltar ao Mestre e pedir ajuda. Isto se repete em diversas outras obras. Isto é visível em metrópoles como São Paulo, onde edifícios históricos são demolidos para dar lugar a contêineres cor-de-chumbo completamente cafonas, inúteis e destituídos de História ou conforto…
Just one word, to end this madness! Argh, it’s going to be my doom!
Endless water! Oh, what badness! Stop, please and just be a broom!
Nonstop it keeps hauling water from the stream,
Soon I will be crawling, drowned among the bream.5— Goethe.
Cansei disto e de quem é assim. Decidi sair pela tangente, simplesmente fui embora. E vou embora sempre que a ocasião me parece banal e superficial. O mundo é antigo, os problemas vão e vêm. Mas cada vida é única e pouca, e devemos vivê-la, evitando consumi-la.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
— Canto III. Hilda Hilst
Sempre fui das erupções vulcânicas, e ainda sou, em certo sentido, no sentido de sentir profundo. Mas tenho aprendido a esticar o Tempo, justamente ao saborear aquilo que não é imediato. A espera tem um sabor limítrofe: posso sentir, posso tocar, antes de sentir ou tocar de fato. É um quase. Um talvez. Nem sim, nem não: com o pavor do não, e o desejo do sim.
A vida não é para ser agilizada, a vida é para ser experienciada.
É um terror, é verdade. Viver à margem. Aqui, Time is not money. Não se trata de quantidade, de volume, como um beberrão que adora expor seu apreço pelos tantos copos que consegue engolir sem se estrebuchar no chão. Prefiro quem senta pra beber sua bebida amarga sozinho, ruminando os problemas da vida numa meia luz que o acompanha, Eremita, iluminando-o como um resquício de esperança de alguma saída, por Deus, dando severidade e respeito pelos seus pensamentos. Um chiaroscuro, um tenebrismo amigo. Essa solitude que tanto tenho e que tanto me ensina, e que é um manto que me aquece nas noites frias. É o Tempo quem diz: acalme-se, você não precisa engolir o mundo de uma só vez. Ouço isso em sussurros há pelo menos cinco anos. E talvez agora que esteja começando a compreender.
E nessa espera, sempre esperançosa e muito descrente, eu, que sou âncora, fico à deriva. Estou com um texto pausado sobre Viagem ao Centro da Terra e justamente me sinto um misto de Lidenbrock e Axel, seu sobrinho. O velho professor sonhador, que não só segue um mapa que o leva para dentro de um vulcão adormecido, como não desiste de atravessar para o outro lado de um mar interior, mesmo que naufrague. Axel, por sua vez, é cheio de temores, saudades da amada e ceticismos ansiosos. Por mais que se lance ao perigo, o tio é sereno. Ele observa o horizonte, faz seus cálculos em silêncio. Os mantimentos prestes a acabar, as feras mesozoicas… E ainda assim não desiste. Axel, incrédulo, esperneia diversas vezes. Mas está errado: a aparente loucura do tio os leva a viver uma das maiores aventuras de nossa literatura dos últimos séculos.
Li um texto de Isabella Vaz para o
que me tem tirado o sono. E tem mesmo: eu poderia ter parado o texto e ido dormir, mas não consigo. E esse não conseguir se explicará: é inevitável, vai acontecer. Já está acontecendo, quer eu queira ou não. Estou sendo impelida, empurrada, arrastada. Fala de Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio.6Não é bem um dizer, mas é um acontecimento. E acontecimentos não se dizem, acontecem. E acontece que Hilda é uma pérola preciosa na poesia brasileira. E eu não consigo tirar costuras da cabeça, e ela me vem logo com Ariana, que é Ariadne. Ainda não sei se conseguirei sair do labirinto em que me atrevo, e me parece que está em minhas mãos. Este centro do labirinto me oferece a loucura de um Pink ensimesmado atrás dos próprios muros, mas se eu conseguir sair, estarei abraçando a liberdade. Contudo, a liberdade, tão cara, é insegura, desmurada. A liberdade é um navio, é viajante. E eu sou âncora.
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
— Canto VIII. Hilda Hilst.
Por ser âncora, presente e limítrofe, fico bamboleando nesses anéis de Saturno, sem saber para onde me dirigir. Algo é imanente. Eu não sei o que. Na verdade sei, e não me atrevo a dizer em voz alta. É isto que me estica o Tempo e me faz sorver, ao invés de engolir.
Existe uma casa num dos jogos mais famosos de tarot, a cruz celta, que é minha favorita, porque é um grande mistério escancarado: a casa da nona carta (e 9 é número do Eremita), que se chama medos e desejos. E não é isto mesmo que nos assombra? Eros e Thanatos. Ir, ficar. Dizer, calar. O precipício. Se precipitar. Curioso é a Prudência estar à beira, pensando se pula ou não.
Quando sinto que é premente, me retraio. Não quero pressa, mas também quero imediatamente. Quero que as coisas aconteçam, simplesmente. Sem aviso, porque quando há aviso me angustio. Mas também não gosto de surpresas. Vê, o conflito do Tempo do antes e do Tempo de agora? O que é que há?
Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
—Canto I. Hilda Hilst.
Há que se saber navegar, sem atravancar o navio. Isso sim. Mas como saber a hora exata? Já não é de Kronos que se diz, mas de Kairós. Este sim é um mistério. E é com mistério que vou embora. Sonhar. Mesmo me doendo para desistir, não consigo.
O que é isso, que coisa inominada, inescrutável, sobrenatural é essa; quem é este senhor e mestre enganador e oculto, esse imperador cruel e implacável que me comanda; que contra todos os amores e anseios naturais me leva a remar e a fazer força e a avançar o tempo todo; deixando-me imprudentemente pronto a fazer aquilo que por meu próprio coração eu não me atreveria sequer a ousar? […] Pelos céus, homem, somos obrigados a dar voltas e voltas neste mundo, como aquele cabrestante, e o Destino é a alavanca.7
—Herman Melville
No Estúdio
Atualizei a loja! Já vão voltar as aulas, e você bem que podia comprar um caderno disponível no estoque ou encomendar o seu, que tal? Estou brincando com estampas de bandas de rock (as possíveis de se fazer com carimbos e bordados), você pode encomendar também, me mandando um e-mail, whatsapp ou dm no instagram. Vou começar a fazer encadernações com pautas variadas também, desde a comum até a para partituras, caso apareçam músicos por aqui.
Trabalhos do mês
Continuo com a série Labours of the months, ilustrada pela família Bassano. Todo início de mês uma curiosidade sobre calendários que levavam em conta o trabalho agrícola, o zodíaco e as estações do ano, porque a posição dos astros tem tudo a ver com os estágios da safra, comportamento dos animais — incluso Homo sapiens.
Se você curte previsão além da meteorológica, eu tenho o
, e lá falo mais sobre Tempo, leio baralhos, runas, arrisco meus estudos em astrologia helenística.Isso é tudo, pessoal! Acabou o óleo combustível desta embarcação por hoje.
Moby Dick adaptada por Werner Zotz.
BRAUDEL, Fernand. O Espaço e a História no Mediterrâneo. p. 29.
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3 ed.São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 198-199.
PLACE, Robert M. The Game of Hope, the Anchor, and the Tarot. Tradução minha.
GOETHE. The Sorcerer’s Apprentice. Trad. Katrin Gygax.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Antofágica. Edição do Kindle. p. 665.